Como J.K. Rowling passou de pessoa influente a ‘cancelada’ na web

Por - 24/09/20 às 07:00

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O ano era 2001 e o primeiro filme da franquia de Harry Potter era lançado. O mundo passava a conhecer o rosto de Daniel Radcliffe, Emma Watson e Rupert Grint nas peles do bruxos (e trouxa) Harry, Hermione e Rony.

Mas J.K. Rowling, autora da fantasia, penou até que o primeiro livro (de mesmo nome do longa) fosse publicado, em 1997. Após a junção de literatura e audiovisual, ela ganhou fama, viu o sucesso de suas palavras e feitiços atravessarem barreiras. Virou uma imagem de referência aos jovens da época e mais adiante.

J.K. Rowling se tornou uma 'vilã' depois de anos ovacionada por admiradores de suas obras

De repente – ou nem tão rápido assim – a escritora foi de ‘fada sensata’ a ‘cancelada’ na internet. Todo seu histórico de lutas sociais ao longo dos anos no estrelato foi colocado a jogo depois de reproduzir comentários considerados transfóbicos no Twitter, única rede social onde é ativa.

Mas o que é transfobia? De modo geral, é o preconceito e ódio contra pessoas transgêneros que se manifestam em violência física, moral ou psicológica. E o assunto angariou os admiradores brasileiro também porque, de acordo com a Agência Brasil, mais de 100 pessoas trans morreram assassinadas no País pelo simples fato de serem trans.

Se com Harry Potter ela tratou de temas como injustiça, preconceito, solidão e revolução (bem progressista), agora é alvo do retrógrado, do, me arrisco a dizer, conservadorismo.

Antes, ela revelou que Dumbledore era gay como uma forma de dar o seu apoio à comunidade LGBTQIA+; posteriormente, em 2019, defendeu Maya Fostater, uma pesquisadora que perdeu o emprego após se posicionar contra uma legislação que permitiria que as pessoas trans se identificassem com outros gêneros.

“Vista-se como quiser. Chame a si mesmo do jeito que preferir. Durma com qualquer adulto que puder consentir e quiser você. Viva a sua vida da melhor forma, em paz e em segurança. Mas tirar as mulheres de seus empregos por dizerem que sexo biológico é algo real?”, escreveu ela no tweet

J.K. Rowling defende pesquisadora acusada de transfobia

A partir desse episódio, J.K. virou a vilã. Foi de Hermione Granger a Bellatrix Lestrange. Seu perfil na rede social do passarinho azul converteu-se a uma teia de atualizações e demonstração de opiniões consideradas ataques. Fãs e não fãs da britânica ficaram surpresos, discutiram com Rowling, se decepcionaram.

Em outro capítulo problemático, neste ano, Joanne (seu nome verdadeiro) ficou incomodada com o título de um artigo: "Criando um Mundo Mais Igualitário Pós-COVID-19 para Pessoas que Menstruam".  

Ao se deparar com o conteúdo e o título, Rowling disse: "Tenho certeza de que existia uma palavra para essas pessoas. Alguém consegue me ajudar. Wumben? Wimpund? Woomud?", escreveu ela, fazendo referência às variações propositais da palavra woman, que significa mulher em inglês. Ela foi fortemente criticada por pessoas trasngênero e apoiadores da causa.

Até mesmo atores que fizeram parte do elenco dos filmes do bruxo tomaram um rumo diferente nas constatações da autora.

“Mulheres trans são mulheres. Homens trans são homens. Nós todos deveríamos ter o direito de viver com amor e sem julgamento”, afirmou Rupert Grint. “Mulheres trans são mulheres. Qualquer declaração contrária apaga a identidade e dignidade de pessoas transgênero e vai contra todos os conselhos dados por profissionais de associações de saúde que têm bem mais expertise neste assunto do que a J.K. Rowling ou eu”, defendeu Radcliffe.

Mais tarde, sem sentir a necessidade de pedir desculpas, ela publicou um longo artigo em seu site oficial e polemizou de novo.

Apesar de ter falado de um assunto sério como a violência doméstica sofrida por ela, J.K. continuou firme com seu posicionamento acerca da sexualidade e gênero, batendo na tecla do sexo biológico, e sugeriu que as substituições hormonais prescritas para pessoas trans são um “novo tipo de terapia de conversão para jovens gays.”

Ela alegou que alguns jovens que estão recebendo tratamentos com “hormônios e cirurgia” por médicos, podem não ser transgêneros. Escreveu que ignorou “tweets falsos” atribuídos a ela, ameaças de morte, ameaças de estupro, notícias falsas, e decidiu não ficar calada. 

A escritora continuou dizendo que o que ela realmente queria dizer é que as pessoas que se submetem erroneamente à reposição hormonal ou à cirurgia completa podem enfrentar “riscos à saúde a longo prazo”.

"Muitos profissionais de saúde estão preocupados com o fato de os jovens que lutam com sua saúde mental estarem sendo desviados para hormônios e cirurgias quando isso pode não ser o caso. Muitos, inclusive eu, acreditam que estamos vendo um novo tipo de terapia de conversão para jovens gays, que estão em um caminho de medicalização ao longo da vida que pode resultar na perda de sua fertilidade e/ou função sexual completa. Como já disse muitas vezes, a transição pode ser a resposta para alguns, para outros não será […] Os riscos à saúde a longo prazo de hormônios sexuais já são rastreados há muito tempo: os ativistas trans geralmente minimizam ou negam esses efeitos colaterais. Nada disso pode incomodar ou perturbar sua crença em sua própria justiça. Mas, se assim for, não posso fingir que me importo muito com sua opinião ruim sobre mim.”

Porém tenha calma, vem mais por aí. Rowling chegou a deixar de seguir Stephen King (It – A Coisa, O Iluminado) e apagou seus elogios ao escritor depois que este apoiou a causa trans em resposta a um fã, afirmando que “mulheres trans são mulheres”. Que treta!

Daniel Radcliffe, Emma Watson e Rupert Grint, os protagonistas de Harry Potter

Recentemente, a inglesa lançou o quinto livro da série do detetive Cormoran Strike, a qual ela publica sob o pseudônimo de Robert Galbraith. Chamada Troubled Blood (algo como Sangue Perturbado), a obra caiu no âmbito transfóbico justamente pelo cenário em que Rowling se inseriu somado à sinopse.

Baseada em uma investigação real dos anos 1970, um assassino em série cisgênero (um homem que se identifica com seu gênero biológico, ou seja, masculino) se veste de mulher para atacar as vítimas e passa a ser procurado. 

Péssima hora para o lançamento, hein?!

Em seguida, ela compartilhou em seu Twitter a opinião de um perfil que discutia a matéria divulgada pela organização Stonewall UK. Na manchete, umas aspas discutia as regras dos esportes em relação à comunidade transgênero.

“Nós estamos questionando os clubes de rugby de todos os níveis para nos apoiarem contra uma decisão que é excludente e vai impactar algumas das pessoas mais vulneráveis em nossa comunidade.”

A pessoa, então, compartilhou e disse que era um ex-atacante de 1,88 metro e que “se se identificasse como uma mulher, a Stonewall vai dizer que é OK eu me chocar contra uma mulher que pesa 4 ou 5 pedras a menos do que eu. Quando ela tiver uma lesão vertebral que mudará a sua vida por causa disso, tudo bem, porque nenhum sentimento foi ferido.”

Mais tarde, ela publicou uma foto usando uma blusa com uma estampa que diz: “Esta bruxa não queima”. Estaria tudo bem se o site onde ela comprou não tivesse uma categoria no menu chamada ‘críticas a gêneros’ e contivesse livros cujos títulos vão de ‘Transativismo é misoginia’ a broches com a frase ‘F****-se os seus pronomes’.

A série do detetive Cormoran Strike: O Chamado do Cuco, O Bicho-da-Seda, Vocação Para o Mal e Branco Letal

Vale ainda lembrar que na época da sequência de Animais Fantásticos e Onde Habitam, J.K. não atendeu aos apelos sobre tirar Johnny Depp do longa. O famoso ainda vive uma intensa batalha judicial contra a ex, Amber Heard, em torno de acusações agressões físicas e psicológicas de ambos.

Falando desse modo, nem parece que a autora é a mesma que apoiou a escalação de uma atriz negra para viver Hermione no teatro em Criança Amaldiçoada (uma história de Harry Potter escrita por um admirador da saga). Claro que a perfeição não existe e pessoas erram, mas existe uma grande diferença entre aprender com as falhas e persistir nelas, ignorando os avisos.

Opiniões divergem o tempo todo; crenças também. Mas a partir do momento que nossas falas atrapalham a existência de alguém, é hora de repensar. J.K. precisa repensar. Ela sofreu muito preconceito por ser mulher, até mesmo criou o seu nome artístico porque a editora de Harry Portter achou que os livros não venderiam tanto se levassem o nome de uma mulher, então as siglas nasceram. Entretanto, lutar por algo e apoiar outra coisa não anula a batalha enfrentada.

Será que o legado de Potter sofrerá ainda mais balanços daqui para frente?

 

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