Tatiana Tiburcio sobre Falas Negras: ‘Senti como se Miguel fosse o meu filho’
Por Redação - 30/11/20 às 08:10
Para fechar o mês de novembro, em que se discutiu de forma mais ampla questões ligadas à Consciência Negra – embora o debate seja permanente – nossa reportagem desbravou as fronteiras da teledramaturgia, em busca da atriz que paralisou o País com sua brilhante atuação, no Especial Falas Negras, exibido pela Rede Globo no último dia 20.
Trata-se da atriz, diretora e professora de interpretação, Tatiana Tiburcio. Aos 43 anos, sendo 20 de carreira e, 15 deles dedicados à TV, a artista comoveu o telespectador com sua veracidade em cena.
O Brasil chorou revivendo a tragédia da doméstica Mirtes Santana, que perdeu o filho Miguel, de apenas 5 anos, após ele pular do 9º andar do edifício Píer Maurício de Nassau, Centro de Recife, por negligência de sua patroa, Sarí Gaspar Côrte Real.
“Para conseguir construir, eu tive que achar um ponto de interseção entre as nossas dores”, ressaltou Tatiana para OFuxico.
Falas Negras: web reage à brilhante atuação de Tatiana Tiburcio
Construção das cenas
De autoria da dramaturga Manuela Dias com direção de Lázaro Ramos, a obra contou com a atuação de outros 21 atores que viveram personalidades de diferentes épocas, militantes contra o preconceito racial.
Não bastasse a atriz brindar o público com sua impactante atuação, foi a responsável por preparar o elenco em seus respectivos papéis.
“Eu tinha uma galera impressionante nas mãos”, elogiou ela.
O projeto foi um dos mais comentados das redes socais, antes e depois da exibição, pelas interpretações tocantes, atreladas a caracterizações impecáveis!
Uma operária de sua arte
Essa talentosa carioca, A-P-A-I-X-O-N-A-D-A pelo oficio desenvolvido, demonstrou tal sentimento via telefone, em um bate-papo franco e necessário sobre a questão racial.
Além de ser uma profissional multifacetada, atuante na TV, cinema e teatro – sendo indicada ao Prêmio Shell no ano de 2015, como Melhor Atriz por seu trabalho na peça Salina – A última vértebra, e outros prêmios em festivais internacionais na sétima arte, é professora de artes dramáticas pelo Sesc Copacabana.
“O palco é a minha casa!”, sintetizou Tiburcio.
Acompanhe a seguir esta deliciosa entrevista, que nos faz refletir sobre pontos importantes de nossa sociedade. Boa leitura!
OFuxico: As pessoas ficaram impactadas com sua interpretação, a entrega em cena no Especial Falas Negras. Como foi encarnar a história dramática de Dona Mirtes, essa personagem da vida real?
Tatiana Tiburcio: Foi dolorido, porém, o curioso é que eu acabei colocando em um lugar distanciado da dor, por mais contraditório que pareça. Para conseguir construir, eu tive que achar um ponto de interseção entre as nossas dores. Toda mãe tem medo de perder seu filho, seja em um acidente, doença, fatalidade… A mãe negra também tem todos esses medos. Mas ela também tem medo de perder o filho para o racismo.
Quando aconteceu [a tragédia] com o Miguelzinho, eu não senti como se tivesse perdido o meu filho, o meu João. Eu senti como se o Miguel fosse o meu filho! E de alguma maneira, ele também era meu filho, essa dor também é minha, pelo que ela significa, dentro de um contexto social. Da forma como somos desenhados, vistos. Os problemas que são agregados a esses signos que carregamos. É nesse lugar que essa dor reside. Há um distanciamento do indivíduo e uma aproximação do coletivo. É a dor dessa mulher negra, brasileira, a partir da forma que somos invisibilizados.
OF: Em 15 anos de televisão, você já tinha vivido essa repercussão e comoção gerada em torno do seu trabalho?
TT: Olha, sabe que não (risos). Isso tudo é muito novo para mim, algo nessa dimensão. Quando eu fiz a Chica de Sol Nascente, teve uma repercussão bacana, de reconhecimento na rua, das pessoas comentando mesmo após o término da novela. Mas não chega nem perto do que está acontecendo agora. Recebi uma avalanche de afeto, carinho, reconhecimento. Ao mesmo tempo que assusta, é muito legal (risos). É gostoso. A gente trabalha para tocar as pessoas, levar esse deslocamento da realidade. O objetivo é afetar o outro, esse é o princípio do ator.
OF: Como foi trabalhar como a preparadora de elenco deste projeto?
TT: Eu fui muito privilegiada, porque eu tinha uma galera impressionante nas mãos. Um elenco incrível, com uma escuta importantíssima, aberta, atenta, uma tremenda troca, generosos, e, principalmente, uma identidade com o discurso. Não vou te dizer que foi fácil e ainda bem! Mas foi muito prazeroso ter esse contato com os atores, partilhar com eles a minha forma de fazer. Eu já dou aula algum tempo, então, o contato com o ator não é algo distante, complexo para mim, porque eu já exercito dentro das oficinas. É como se eu tivesse com um companheiro de trabalho em cena. Batendo e descobrindo aquele texto, entendendo as nuances, mostrando e descobrindo caminhos. Eu realizei com eles, o que faço comigo, o caminho que eu sigo para chegar aos meus personagens, para que eles encontrem seus próprios caminhos. É uma troca de companheiros, muito no horizontal a relação.
OF: Você integrou o elenco de duas novelas em reprises atualmente na Globo: Malhação e Flor do Caribe. Qual o sentimento de ter vivido essas duas personagens?
TT: Fazer esses dois trabalhos foi maravilhoso! Durante toda minha trajetória, eu fui presenteada com as personagens que recebi. Sou muito agraciada nesse sentido. Fazer a mãe do Fio foi uma participação pequena, Nossa Senhora de Aparecida também, mas muito importante no que é fundamental para mim como atriz, comprometida com uma ideia, com a minha função social. E todos esses personagens tem esse lugar. Nossa Senhora, por exemplo, algo tão delicado, lírico, a cena é linda! É uma santa preta, negra, uma referência para nós. A Cristiane, mãe do Fio é a mesma coisa, dialoga tanto com nosso cotidiano, nossa realidade. É um presente por meio da minha arte, resignificar as histórias: desde as mais líricas e suaves as mais diretas e contundentes como foi com a Mirtes.
OF: Qual o papel você sonha em fazer na TV?
TT: Vou ficar no clichê do clichê: gostaria de fazer uma mega vilã. É um desafio grande para nós negros. A gente tem a vilania como um dos fatores significantes atribuídos a nós: a maldade. É algo associada a nossa imagem. Mas estamos enquanto humanidade desconstruindo isso aos poucos. Então, eu gostaria de fazer uma vilã, não pelo motivo que a maioria busca, pela delícia que é viver um personagem controverso. Mas, pela possibilidade de mostrar a vilania não atribuída à minha cor de pele, que não associem à minha identidade visual. Os negros tem medo de fazer vilões, porque sempre nos enquadram em um estereótipo.
OF: De que maneira descreve a sua relação com o palco teatral?
TT: O palco é a minha casa! Eu me realizo no trabalho independente do veículo que esteja acontecendo. O palco tem uma particularidade que é a possibilidade que ele nos dá de cada instante, ser único. Aquele instante não vai se repetir. O tom da frase, a leitura de uma determinada imposição… Essa sensação é maravilhosa porque nos permite entrar com a roupagem do deleite, com o desejo de se encantar a cada momento. O teatro me dá a base para fazer tudo mais; esse principio que a gente leva pra TV, cinema, outras formas. Ser verdadeiro a cada frase, a cada respiração, ter como foco aquilo que estamos representando. Ter a generosidade e a humildade de sair de cena enquanto individuo, e permitir a existência desse outro indivíduo fictício. É um exercício de humanidade.
OF: Além de atriz, você também é diretora de teatro. Em março desse ano, dividiu a direção do espetáculo O Método Grönholm com o Lázaro Ramos, certo?
TT: Sim, foi no início dessa loucura pandêmica que estamos vivendo. Nos apresentamos em um único final de semana… Que triste! Estávamos tão empolgados, esperançosos, felizes. Pretendemos voltar com esse projeto, assim que tivermos condições de segurança e saúde. Vale muito à pena, conseguimos realizar um trabalho bacana.
OF: Quais são seus próximos projetos profissionais?
TT: Estreei um espetáculo online, Insubmissa Negra Voz, que fala da escrita de Conceição Evaristo, que passa pelo existir, pela vivência do instante. Juntamos trechos de sua obra com situações de histórias das nossas vidas. São quatro atrizes em cena, uma construção majoritariamente feminina, trazendo o olhar negro sobre essa mulher. Tem a estreia em dezembro do filme M8 – Quando a morte socorre a vida, um projeto incrível com direção do Jeferson D. E o filme Rosas que está percorrendo os festivais internacionais, há pouco tempo recebi dois prêmios de Melhor Atriz.
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