Nos tempos de quem? Novela dá aula de equívocos e autora pede desculpas
Por Flavia Cirino - 26/08/21 às 09:00 - Última Atualização: 27 agosto 2021
Nos tempos do Imperador, (aqui a referência não é ao nome da novela das 18h, da Globo) o termo “gatilho” era mesmo o da essência da palavra: o ato de apertar ou puxar a alavanca de uma arma. O nome – derivado do “gato” – se refere às primeiras armas de fogo, feitas artesanalmente e decoradas. A peça que segurava a pederneira era representada por uma cabeça de gato, daí o nome. Mas nos tempos atuais, gatilho chegou à esfera emocional.
Recente, a gíria expressa algo que pode desencadear uma reação. Trazendo para a realidade mis que atual, algo como “apaga esse post, ele está me dando gatilho, vou chorar”. Então vamos lá: estamos em 2021, tempo em que tudo o que é exibido na TV deveria vir com um alerta de gatilho. Assim como na web, nos meios impressos, no rádio streaming, onde seja.
Desde o primeiro dia de exibição, aliada à expectativa pela estreia da primeira trama inédita em meio a essa insana pandemia, veio a decepção pela sucessão de gatilhos trazidos por “Nos Tempos do Imperador”. A escravidão negra no Brasil, a mais longa da história, não é ficção descrita apenas na trama de Thereza Falcão, caro leitor. E se você aqui busca justificativa naquela máxima de que “novela é obra de ficção”, os tempos são outros!
O sucesso de “A Escrava Isaura” – a de Lucélia Santos -, por exemplo, hoje não se repetiria. Da mesma forma que praticamente nenhuma piada que alavancou o humor do extinto “Casseta & Planeta” cabe mais, nem mesmo quase 100% das esquetes protagonizadas pelo saudoso Mussum, em “Os Trapalhões”. Motivo? O mesmo, os tempos são outros!
A trama é de época, sim, mas não justifica. Assistir cenas que envolvem abusos contra negros escravizados, com todos os requintes de crueldade possível, e não imaginar que um ancestral nosso tinha isso como “rotina”, não é um gatilho dos piores?
PRIMEIRO CAPÍTULO JÁ DISSE A QUE VEIO
Logo no primeiro capítulo, um grupo de negros escravizados identificados como Males invade uma fazenda para libertar seus pares. Na cena, homens e mulheres são dizimados pelos capitães do mato e seus capatazes. Uma mulher negra é baleada na frente do filho, golpes de capoeira são interrompidos por facada.
O negro Jorge/ Samuel (Michel Gomes) se fere nesse combate e é salvo por Pilar (Gabriela Medvedovski), moça branca de família abastada, que apesar de ser descendente do opressor, caiu imediatamente nas graças do escravizado fugitivo. Ele agradece a mocinha por ter salvado sua vida e a chamou de “anjo”. Já se sabe que eles serão um casal na novela.
Em outra cena, a Condessa de Barral (Mariana Ximenes) é recebida por negros sorridentes na lavoura ao visitar um bebê recém-nascido.
Na pele de Dom Pedro II, Selton Melo interpreta um personagem “humanizado”, que deixa até que esqueçamos que ele não aboliu os escravizados. Poderia… A visão de herói da nação que a novela vai tentar imprimir, não é real. D. Pedro II sequer estava presente à assinatura da Lei Áurea e a imagem dele é construída como em contraponto com o comportamento de Pedro I. Mas já é outra história…
E VAMOS DE ‘RACISMO REVERSO’
No capítulo exibido no último sábado, 21 de agosto, foi mostrada uma brilhante aula de “racismo reverso”, que é a maneira que quem não entende de questões raciais justifica uma suposta prática de negros contra brancos. Na cena, o casal citado no primeiro capítulo: a sinhazinha Pilar e o escravizado Samuel.
A jovem branca busca morada na Pequena África (o local onde se estão as principais marcas deixadas pela história dos negros no Rio de Janeiro, no centro da capital), já que Luísa (Mariana Ximenes) partirá em viagem e não poderá mais abrigá-la. O local serve de acolhimento e proteção para negros livres, ex-escravizados, e também fugitivos. A moça tenta convencer Lupita (Roberta Rodrigues), que reluta em dividir o único quarto disponível.
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A ideia é vetada por Dom Olu (Rogério Brito), considerado o rei do lugar. Ele explica que Pilar terá facilidade para encontrar outro local para morar, o que não acontece com os negros. Ela compreende o argumento, mas seu namorado, o ex-escravizado Samuel, acusa os outros moradores do reduto – todos negros – de discriminação.
“Só porque você é branca não pode morar na Pequena África? Como queremos ter os mesmos direitos se fazemos com os brancos as mesmas coisas que eles fazem com a gente?”, disse ele na cena.
Pilar dizia entender dom Olu, já que ela tinha mais privilégios e oportunidades por ser branca.
NÃO DÁ MAIS PARA CALAR
Uma avalanche de críticas ao texto e às cenas de “Nos Tempos do Imperador” assolou a web, de imediato. Ao ponto de Thereza Falcão, autora da novela, se desculpar pela cena.
“Erro grosseiro”, admitiu a escritora na terça-feira, 24 de agosto.
Mas a reação de Thereza só se deu diante do desabafo e indignação de AD Junior, um dos mais representativos influenciadores digitais em defesa de questões raciais.
“Mas gente quem pensou essa cena? São cenas como essa que viram verdades para pessoas desinformadas sobre o período da escravidão. Pessoas negras nem eram consideradas seres humanos e nem poderiam de fato segregar pessoas. Sem poder. Os brancos poderiam morar até lá no centro da pequena África se quisessem. Eles são e eram donos de tudo… Pessoas negras viviam em regime de exceção. Um homem preto sentado num banco de uma praça com uma mulher branca, seria um ET que está visitando a sua namorada em marte… primeiro porque pessoas negras não podiam “vadiar“, ou seja, andar sem destino e sentar no banco da praça!”, escreveu ele.
“A fala de um homem negro no período da escravidão dessa forma seria tão bizarra que chega a assustar quem assiste a uma cena dessas. Quem foi o ser que escreveu esse texto?”, disse o apresentador, em outro trecho da postagem.
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Thereza Falcão – que divide a autoria da novela com Alessandro Marson – tentou justificar dizendo que a trama teve a maior parte gravada em 2018. Ora, não poderia refazê-las? Claro que sim! Em “Quanto Mais Vida Melhor”, várias cenas de uma atriz que saiu da trama foram regravadas pela colega que chegou, por exemplo…
“Foi péssimo. Pedimos muitas desculpas. Eu mesma quando vi a cena aqui em casa, falei: o que foi isso? Todos os capítulos que vão ao ar até o 24 foram escritos em 2018, gravados na ampla maioria em 2019”, justificou ela.
A escritora alegou que durante o período não havia consultoria, uma prática adotada pela Globo depois da vitória de Thelma Assis no “BBB20”. Em produções distintas, eventualmente é contratado alguém – negro, claro – para dar consultoria. O pesquisador de cultura afro-brasileira Nei Lopes é o responsável por “Nos Tempos do Imperador”.
“Na época não contávamos com uma assessoria especializada, o que só aconteceu no ano passado, com a entrada do Nei Lopes. Hoje assisto a muitas cenas com uma sensação muito longínqua. Mais uma vez pedimos desculpas por cometer um erro grosseiro como esse”.
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NOS BASTIDORES
A reportagem de OFuxico apurou que reuniões estão sendo feitas para minimizar a situação. Vale lembrar que, fora do âmbito da questão racial, a Globo já teve problemas que foram “resolvidos” com avisos antes e depois das transmissões de algumas novelas para alertar o telespectador sobre erros ou contextos históricos. A mais recente situação foi com a segunda parte da novela “Amor de Mãe”, que trazia informações desatualizadas sobre a Covid-19.
O canal Viva também inseriu o aviso “esta obra reproduz comportamentos e costumes da época em que foi realizada” antes das reprises de “Da Cor do Pecado” (2004), “A Viagem” (1994), “O Salvador da Pátria” (1989) e “Era Uma Vez” (1998). Algumas dessas tramas trazem expressões racistas e preconceituosas. Enfim, aguardemos…
É jornalista formada pela Universidade Gama Filho e pós-graduada em Jornalismo Cultural e Assessoria de Imprensa pela Estácio de Sá. Ela é nosso braço firme no Rio de Janeiro e integra a equipe de OFuxico desde 2003. @flaviacirino