Stênio Garcia crava: ‘Silvio de Abreu exigiu minha cabeça’
Por Redação - 29/05/20 às 08:15
Qual o expectador de teledramaturgia brasileira, nunca se emocionou com as histórias contadas diretamente da boleia de um caminhão, da dupla de amigos, Pedro e Bino – esse por sinal, interpretado de forma genial por Stênio Garcia, da série Carga Pesada? Isso para citar um de inúmeros trabalhos brilhantes do artista na telinha.
No auge de seus 88 anos, sendo 71 dedicados aos palcos (começou no elenco da última fase do Teatro Brasileiro de Comédia) e, em 2021, completando 60 anos de TV, o mestre das artes cênicas vive os amores e dissabores da profissão.
“Eu me sinto feliz e honrado de ter sido um dos que começou essa história, no teatro e na TV, até surgirem as telenovelas. Mais feliz ainda por ter permanecido trabalhando ao longo desses 60 anos com personagens inesquecíveis como o Bino de Carga Pesada, Tio Ali de O Clone, Zé do Araguaia, mestre Antônio, Corcoran, Aleijadinho, entre tantos outros…”, iniciou ele, em entrevista para OFuxico.
Basta conversar minimamente com o ator, para notar seu fascínio pelo ofício que o move, refletido em cada novo personagem.
“Hoje posso dizer que eu e a dramaturgia nos misturamos. Ter construído uma obra dentro disso me fascina, pois a criação dos meus personagens pertence a mim, já que tenho um processo bem peculiar na construção de cada um, a ponto de me anular e por fim, digo como ator e cidadão brasileiro que um país sem arte, cultura e educação é um buraco escuro, e espero ainda com meus 88 anos de vida, ter saúde para contribuir ainda mais. Sou um ator que ama o ofício, só paro de criar personagens em minha mente quando eu der meu último suspiro. O sentimento é de profundo amor e realização. Espero que saia a vacina [do novo coronavírus] para comemorar meus 60 anos de teledramaturgia com um personagem que será um presente da arte e dos deuses do teatro”, descreveu.
Desligamento da Rede Globo de Televisão
Artista querido há décadas pelo grande público que o acompanha em novelas, séries e seriados, transparente que é com seus fãs, o veterano não esconde a mágoa que sente da emissora carioca, por ter sido desligado, segundo ele, injustamente, após mais de 40 anos de serviços prestados à emissora carioca.
“O meu contrato de ator na Rede Globo de Televisão era desde 1973, nunca foi com prazo determinado como as pessoas que trabalham como PJ (pessoa jurídica). Sempre fui pessoa física, trabalhava no regime CLT e, por isso, meu contrato com a emissora era de prazo indeterminado”, disse ele, que responsabiliza uma única pessoa por sua saída da empresa: o novelista e diretor de teledramaturgia da casa, Silvio de Abreu.
“Se engana quem acha que meu contrato não foi renovado, foi bruscamente rompido de uma forma inacreditável por retaliação do Silvio de Abreu, após minha mulher pela milésima vez, esclarecer o motivo de minha ausência. Só que ela sempre me mostrava a indignação dos meus fãs e respondia no privado [da rede social]. Mas, no dia 28 de abril, achando que estava no particular, respondeu na página aberta [aos comentários]. No dia 3 de maio, todos voltaram e houve uma reunião, onde o Silvio de Abreu exigiu minha cabeça, sem ao menos ninguém do departamento artístico ter falado comigo”, revelou o ator.
A desavença de Silvio com Stênio iniciou-se há longos anos, em 1968. O autor teria ficado inconformado com a separação da atriz Cleyde Yáconis com Garcia, tomando as dores da amiga que tanto admirava.
“Eu não escrevi e nem falei nada, se pessoas me defendem, sabem de toda a história e contam, que culpa eu tenho? Eu sou um senhor de quase 90 anos e fui demitido por retaliação, após ter ficado sete anos na geladeira da Globo. Amarguei todo esse tempo, porque ele riscava meu nome quando eu era escalado, chegando ao ponto de impedir os autores de mandarem sinopse pra mim. Sei que alguns insistiram e não conseguiram impedir um funcionário idôneo de exercer seu ofício, isso é crime previsto na CLT, sob pena de indenização e multa por assédio moral por causa da perseguição. Agora te pergunto: dei minha vida, minha arte e meus personagens a uma empresa que deixou o Silvio de Abreu fazer isso comigo durante sete anos?? Não sabiam que era crime? Não perceberam? Minha mulher esteve lá em 2019, e conseguiu falar com alguém, dizendo que eu queria e precisava trabalhar”, completou o intérprete.
Famoso por meio de seus projetos, ele ressaltou que sua demissão resultou em problemas emocionais.
“Um ator como eu não vive do salário base e sim da produtividade, luvas e eventuais comerciais que fazemos por fora quando estamos no ar. Esse período mexeu com o meu emocional, me causou problemas de saúde que hoje preciso tratar e não tenho dinheiro. E tudo que eu tinha de reserva em aplicação, tive que retirar mês a mês para manter o meu padrão e de minha família, já que eu era o provedor. Agora, não sei se poderei continuar morando em minha casa porque na minha idade, com remédios caros, alimentação, fisioterapia na academia ou até em casa, pagar contas e impostos é impossível com R$ 5.500 mensal. Me mantiveram com plano de saúde por dois anos e depois? Dei minha vida, minha saúde gravando até com dengue hemorrágica, gravando com aneurisma na aorta abdominal a ponto de estourar, com gripe, febre e até cálculo renal, sempre fui um profissional exemplar, e aí entra um autor que me odeia desde 1968 e me põe na geladeira me causando danos morais, financeiros e de saúde, até exigir que interrompessem meu contrato”, pontuou.
Sete anos na ‘geladeira’ da Globo
O ex-contratado da plim plim desabafou ainda, que desde o folhetim Salve Jorge, escrito por Glória Perez, não fez mais um projeto do início ao fim.
“Eu sempre fui um ator que nunca ficou um ano parado por ser muito requisitado. Para entrar em O Clone, por ordem da empresa, na época do Mário Lúcio Vaz e a pedido do Walter Avancini, meu personagem teve que morrer em A Padroeira, para começar os estudos e dar vida ao Tio Ali. Por vezes, de férias, Paulo Ubiratan me achava na Amazônia, pedindo que eu voltasse, pois precisava de mim e sempre vesti a camisa da empresa. Emendei um trabalho no outro, cheguei a gravar Carga Pesada e Hoje é Dia de Maria ao mesmo tempo. Também Cheguei a gravar Carga Pesada e a primeira fase de O Profeta, para depois vir esse Silvio de Abreu, que em 1998 se retirou de sua própria novela, após eu entrar a pedido do Carlos Manga, e comete esse crime comigo? É imperdoável na lei divina e na dos homens”, falou ele, que continuou detalhando o período de marasmo que sofreu.
“Quando acabei Salve Jorge no início de 2013, nunca mais fiz um programa de linha, que significa quando o ator participa de uma obra do início ao fim, e aí sim ganha seu salário cheio que chamam de produtividade. Esse programa de linha é novela, minissérie ou seriado. A transição [do comando da dramaturgia na emissora] começou nesse mesmo ano, onde Silvio já formou sua equipe que após assumir, nunca me procurou. Me ignoraram por ordem do chefe. Como a nova gestão da dramaturgia ignorou a existência de Stênio Garcia, um ator que ajudou a construir essa emissora?”, indagou ele.
Olho no olho com Silvio de Abreu
Questionado se chegou a conversar com o diretor global sobre o assunto que lhe aflige, Stênio Garcia foi direto.
“Por acaso, no lançamento da biografia do [Antonio] Fagundes eu o vi e falei com minha mulher que logo foi até ele e disse: ‘Você aposentou meu marido'. Aí cheguei e ele com aquele riso falso respondeu: ‘Claro que não! Ele acabou de fazer Deus Salve o Rei’, disse ele. Mas foi uma participação de apenas dois blocos, onde o personagem já entrava para morrer, não foi um programa de linha, e sim uma pequenina participação. Ele virou para mim e disse: ‘Stênio vá tomar um café comigo, vá mesmo’, e assim nos despedimos. Durante meses tentei marcar esse café e nunca fui recebido, mais uma vez, ele saindo pela tangente”, contou.
O artista esclareceu se pretende entrar com uma ação na Justiça, contra a emissora.
“Judicialmente, eu tenho que provar toda essa história em processo. Como está escrito na CLT, a indenização por esses sete anos é causa ganha porque o empregador não pode impedir o empregado de trabalhar. Mas eu teria que ter em mãos os contra cheques e tudo que recebi da Globo desde 2003 até 2013, quando terminou Salve Jorge até 31 de março de 2020, meu último salário. Além desses comprovantes, teria que listar tudo que fiz de 2003 até o período que estive na geladeira, do que participei desde a entrada e saída, mas a entrada de uma novela ou seriado começa no workshop, depois ocorrem as gravações e não quando vai ao ar. O Clone foi um mês no Brasil me preparando, dois meses no Marrocos e ainda gravações antes da estreia. São datas impossíveis. Depois tenho que ter uma prova do FGTS desses anos todos para mostrar a queda de 2013 a 2020, laudos médicos falando das três micro isquemias transitórias, que tive devido à pressão desse momento sem trabalho e perdas financeiras e emocionais”, explicou ele.
Alerta aos jovens atores
Ele seguiu pontuando as dificuldades de provar, materialmente, todo o seu relato, e deixou um recado à nova geração de atores.
“Precisaria que autores que já saíram da emissora, falassem que tentaram me escalar e não conseguiram, mas não vou e nem posso expor ninguém a um problema meu. E tem outras coisas que agora esqueci que seria necessário para entrar como provas materiais em processo e assim não ter a chance de perder, mas como obter tudo isso? Cheguei a pensar em pegar o extrato desde 2003 no banco, porém, como fazer isso na pandemia? Se tivesse como reunir todas as provas necessárias, inclusive testemunhas do fato que ocorreu em 1998, eu entraria nomeando um procurador porque não tenho saúde para viver isso. Mas faria para eles virem que crimes não ficam impunes e alertar aos jovens atores a guardar tudo, deixar num cofre, porque injustiças acontecem e eu fui vítima de uma perseguição sem motivo nenhum”, destacou.
Estado de saúde
O artista passa por alguns problemas de saúde que se agravaram após tudo isso, exigindo uma série de cuidados.
“Desde abril do ano passado tenho vômitos inexplicáveis e só uma endoscopia pode revelar. Eles me demitiram estando eu doente, sem saber o que tenho no estômago, e fazendo tratamento devido três micro isquemias transitórias o que demanda médicos caros, neuropsicóloga, exames e fisioterapia. Como pagar isso agora? Minha mulher está tentando ser minha fisioterapeuta em casa, ela faz com muito amor e agradeço, mas preciso dos profissionais. Tenho um líquido aumentado no cérebro que drenei e melhorei, porém, vou precisar drenar de novo. Sou hipertenso desde os 60 anos”, afirmou.
TV Record: “Por que, não?”
Stênio falou dos próximos planos na carreira, quando a pandemia causada pela Covid-19 acabar.
“Um ator não se alimenta só de comida, criar e dar vida a personagens é tão vital quanto respirar. Por que não a Record? Inclusive conheço pessoas que assistem as novelas e gostam muito. Um ator precisa estar numa obra que ele leia, se encante e onde tenha um personagem que o instigue, o desafie, isso pode ser teatro, cinema e qualquer emissora de TV, que me faça uma proposta legal. Já pensei até na Sic em Portugal; os portugueses amam os atores brasileiros. Depois ficaria por lá, faria teatro até a próxima novela e aprenderia o sotaque”, destacou.
O eterno apaixonado se declara à esposa, a atriz Marilene Saad, com quem está casado há mais de 20 anos.
“Se não fosse a dificuldade de pagar as contas, a quarentena em minha casa estaria tranquila, porque estou ao lado da mulher mais bem humorada, amorosa e parceira do planeta. Se eu tiver triste ela sabe encenar uma comédia como ninguém, se não tenho como pagar as contas, ela liga aqui e ali, pedindo desconto, divide cartão… Ela está passando noites sem dormir e isso me deixa arrasado, mas ao mesmo tempo sua força me impressiona. Acho que no filme E o Vento Levou, a personagem da mocinha ficava pobre e pegava o tecido da cortina para fazer sua roupa e, se não me engano, colocou a mão na terra e sobreviveu. Assim está se saindo a minha mulher! Teremos que demitir nossos funcionários, está sendo duro”, revelou.
Por fim, ele conta o que os dois têm feito no período de isolamento social.
“Minha mulher de frágil só tem a magreza e aparência. Ela é uma fortaleza, me levanta, faz exercícios respiratórios comigo, vemos filmes juntos, ama ler e eu também, e como é viciada na novela O Clone, revejo, além das notícias, ela ama debater sobre política. Tomamos sol e namoramos muito, ganho muitos beijinhos. Essa mulher é um touro de tão forte, mas é doce como o mel. Ela é meu sol, minha alma gêmea. Nunca pensei conseguir um casamento longo e já estou há 22 anos porque ela é leve, inteligente e isso pra mim é muito importante, para que haja diálogo e troca. O nosso amor transcende”, concluiu Garcia, à espera de tempos melhores na vida e no mundo.
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