Psicóloga do Alcoólicos Anônimos fala da doença que persegue Julia de “Um Lugar ao Sol”

Por - 21/02/22 - Última Atualização: 22 fevereiro 2022

Personagens de novelas com problemas com álcoolFotomontagem Reprodução TV Globo

Temos acompanhado a novela “Um Lugar ao Sol”, o drama de Júlia, personagem de Denise Fraga, que não consegue seguir a vida por conta do vício em álcool. Na novela da faixa das 21 horas, da Globo, a personagem não consegue se manter em nenhum emprego, tão pouco engrenar na carreira de cantora, pois o vício toma conta e acaba estragando tudo.

OFuxico relembra outros personagens que trouxeram o tema para novelas ou programas de TV, além de uma entrevista exclusiva com a psicóloga Camila Batista Ribeiro, que foi Presidente dos Alcóolicos Anônimos do Brasil (AA), de 2018 a 2021, e hoje atua como voluntária – Amiga do AA – sobre o assunto, suas consequências e tratamento. Confira!

OFuxico – O alcoolismo ou a dependência química, são considerados doença?

Camila Ribeiro – O alcoolismo é considerado uma doença pela OMS (Organização Mundial da Saúde), caracterizada pelo descontrole do uso de bebidas alcoólicas. Outras características norteiam esta doença, como estreitamento do repertório, compulsão pelo consumo de bebidas alcoólicas, aumento de tolerância de álcool no sangue, saciamento da síndrome de abstinência quando ingerido o álcool, são sintomas característicos, critérios para diagnosticar a dependência do álcool como uma doença.

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OFuxico – O que pode levar a pessoa a se tornar alcoólico?

Camila Ribeiro – Vários fatores podem impulsionar o consumo de bebidas alcoólicas, como fatores sociais, incentivo cultural do consumo de bebidas, fatores genéticos, emocionais; o consumo de bebida está associado ao relaxamento, ao prazer. Mas muitas das pessoas que consomem, segundo as estatísticas dizem, 2% da população tem problemas com álcool, abuso ou dependência do álcool.

OFuxico – Como funciona o AA, como é o trabalho e tratamento feitos junto ao alcoólico?

Camila Ribeiro – No AA temos 12 perguntas que ajudam na reflexão a respeito do hábito de beber. Ele não faz diagnóstico. O Alcoólicos Anônimos não faz nenhum diagnóstico nem declara ninguém alcoólico. A própria pessoa que percebe suas dificuldades em relação ao álcool e deseja parar de beber, pode participar do AA. As 12 perguntas são feitas como forma de identificação, de reflexão sobre as relações estabelecidas com a bebida, como por exemplo, beber afeta a sua reputação? Se faltou ao trabalho por conta de bebidas, se bebe pra perder a timidez, fugir das preocupações familiares ou do trabalho; se fica incomodado (a) quando alguém diz que você bebe demais, se tem que tomar uma dose antes de se encontrar com as pessoas, se tem problemas com dinheiro por gastar com bebidas, se bebe até esvaziar a garrafa, se já perdeu a memória por causa de bebida, estas são algumas das perguntas que ajudam a nortear se a pessoa está apresentando ou não problemas com o álcool.

Camila Batista Ribeiro, psicóloga
Camila Batista Ribeiro, psicóloga, ex-presidente do AA Brasil, hoje atuando como Amiga do AA (Foto: Arquivo pessoal)

OFuxico – Quando a pessoa procura o AA?

Camila Ribeiro – É muito comum chegarem por encaminhamento de médicos, profissionais da saúde e até mesmo da justiça, mas principalmente encaminhado pela família, que pede ao alcoólico para que ele procure um tratamento. É comum virem motivados pela família. O que acontece muitas vezes é que quando essa pessoa chega ao AA e participa de uma das reuniões, há um compartilhamento de experiências e a experiência AA de um ajuda quem está chegando a reconhecer suas dificuldades e acontece uma identificação imediata, por conta das histórias, atitudes e consequências serem muito parecidas e comuns aos alcoólicos.

OFuxico – Geralmente a pessoa vai por livre espontânea vontade ao AA ou sempre tem alguém que a encaminhe de início?

Camila Ribeiro – Pode acontecer, na busca de uma pessoa chegar por livre espontânea vontade, em busca de recuperação, em busca de se manter distante de uma garrafa. Mas, na maioria das vezes, é comum que seja feito uma abordagem, principalmente indicações médicas, do trabalho, onde o empregador sugere que a pessoa vá participar de uma reunião e possa se recuperar e continuar na sua ocupação. Médicos também encaminham e a justiça, quando utiliza-se da justiça terapêutica, justiça restaurativa sobre pessoas que cometem crimes leves por conta do álcool.

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OFuxico – Qual a maior barreira que você vê para que a pessoa busque ajuda no AA?

Camila Ribeiro – Penso que uma das grandes barreiras é o preconceito. Não falarmos de maneira clara e objetiva a respeito do alcoolismo; da doença do alcoolismo. A negação é o principal problema do alcoolismo. Enquanto a sociedade nega que o álcool propicia uma série de problemas pessoais, familiares, sociais e de saúde publica, é comum que as pessoas também neguem. E hoje a gente vive numa sociedade que acaba estimulando, banalizando e incentivando o consumo de álcool, fazendo com que muitas pessoas adoeçam e sofram as consequências. Então existe um preconceito por não conhecer, mas principalmente, por julgar a pessoa que bebe como uma pessoa fraca, que não consegue se controlar, com dificuldades. De fato, ela apresenta uma série de características e dificuldades em relação ao consumo de álcool. Mas é preciso entender que o alcoolismo é uma doença e precisa ser tratada.

OFuxico – O alcoolismo tem aumentado nos últimos anos? Principalmente nesse tempo de pandemia?

Camila Ribeiro – Alguns estudos científicos, alguns centros de estudos, têm pesquisado a respeito desse aumento de consumo de bebida alcoólica durante a pandemia. Porém, no AA nós não fazemos esse tipo de estudo. O que a gente observou foi o aumento de procura das salas de reuniões. Com a pandemia, nós instituímos as reuniões remotas, reuniões à distância e com isso pudemos observar aumento de pessoas, profissionais, homens e mulheres, procurando as salas de reuniões para conhecerem o AA. O que nos surpreendeu foi o aumento de mulheres procurando essas salas de reuniões, mulheres eram em torno de 13% e na pandemia subiu para 40%. A gente imagina que isso pode se dever a uma serie de fatores: facilidade em acessar as reuniões, a pessoa pode estar na sua da própria casa fazendo uma reunião dos AA, principalmente porque em algumas localidades do Brasil não tem uma sala de reunião presencial. Então, essa ferramenta tecnológica garantiu a acessibilidade de muitas pessoas às salas de reuniões. Percebemos o aumento da busca de mulheres e jovens às salas de reuniões. Isso é muito importante e significativo.

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OFuxico – Quais danos o álcool ou a dependência química podem causar no indivíduo?

Camila Ribeiro – O álcool pode trazer uma série de danos físicos: cirrose, câncer, AVC, problemas cardíacos e vasculares de forma geral. Também pode trazer uma série de problemas sociais. A gente observa altos índices de violência que, na maioria das vezes, o agressor estava sob efeito de álcool, assim como em acidentes de trânsito. Isso também são consequências do consumo de álcool, problemas físicos, emocionais e sociais. O álcool acaba deturpando a percepção da realidade, reduzindo a fronteira do certo e errado, fazendo um afrouxamento mesmo, muitas vezes colocando as pessoas em situações de risco e vulnerabilidade e, por isso, é tão importante a gente falar dessas consequências em todos os níveis. Inclusive familiar também, porque uma família que tem um membro alcoólico sofre esse impacto diretamente nas relações, nas questões financeiras, porque essa pessoa deixa de cumprir a sua função familiar. E deixa porque a sua vida fica em torno do consumo da bebida alcoólica. Muitas famílias se desfazem, por isso que nós do AA falamos da importância dos familiares fazerem seu processo de recuperação para que eles possam entender e lidar com a doença do alcoolismo.

OFuxico – Existem gatilhos para o indivíduo buscar “conforto” na bebida?

Camila Ribeiro – Os gatilhos são muito individuais, subjetivos, porque cada pessoa estabelece uma relação com a bebida alcoólica. Ela [bebida alcóolica] vem como uma função. A gente observa que pessoas introspectivas fazem uso de bebidas para se liberar, causar esse afrouxamento, se sentir mais desinibida para as relações. Então, qualquer situação que coloque a pessoa em inibição, ela busca o consumo de bebida para se liberar. Como vemos uma associação muito grande das bebidas alcoólicas com momento de relaxamentos, happy hour, então muitas pessoa quando estão sob muita tensão, acham que fazendo consumo de bebidas alcoólicas vão se sentir mais relaxadas, menos estressadas, vão conseguir lidar com esse desconforto do estresse do dia a dia. Então são vários os gatilhos e eles são pessoais, intransferíveis e muito subjetivos.

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OFuxico – Jovens X bebidas alcoólicas: o número de meninos e meninas aumentou? Quais idades buscam ajuda do AA, sendo jovens?

Camila Ribeiro – A gente tem observado também o aumento do numero desse consumo por jovens. Nós em AA percebemos que o público que procurava ajuda era adulto, ou jovem adulto, até porque as consequências do álcool vão surgir a longo prazo. É muito difícil um jovem imaginar que o álcool está causando um problema para ele. Mas de alguns anos para cá é frequente a gente receber um jovem na sala de AA, muitas vezes associando o consumo de bebidas alcoólicas com outras drogas. Aí o impacto dessas outras drogas no organismo causa consequências mais rápidas. Em virtude dessas consequências, eles vão procurar ajuda. Muitos percebem que estacionar só o consumo de outras drogas não é essencial para a recuperação. Então, eles vão buscar o AA, porque o álcool, e é importante frisar isso, ele é uma porta de entrada para o consumo de outras drogas. Por isso ele é tão perigoso, pois ele é aceito socialmente, a acessibilidade a ele é muito mais fácil, então, qualquer pessoa pode andar por aí com uma garrafa de cerveja na mão, ou outras bebidas, e as pessoas vão olhar e achar natural. Naturaliza-se o consumo de álcool e isso acaba sendo um risco para quem é dependente. Porque quem é dependente não tem controle sobre a bebida e ficar numa garrafa, beber socialmente é impraticável pra eles. Aí, a pessoa que tem dependência do álcool, consegue acessar a droga de uso com mais facilidade e os jovens também conseguem acessar, apesar das legislações brasileiras de proibições de venda de bebidas pra menor de 18 anos. Pois a gente sabe que o jovem hoje tem acesso facilitado e, muitas vezes, é estimulado pela família que consome bebida ou permite que o jovem consuma em casa. Acaba sendo facilitador um fator de risco para o consumo de bebidas e ao possível desenvolvimento da dependência do álcool.


OFuxico – Após o acompanhamento no AA, qual porcentagem realmente se mantém longe da bebida? E qual retorna ao vício?

Camila Ribeiro – É muito comum acontecerem processos de recaída. Faz parte do processo de aprendizagem, de recuperação a recaída. O que a gente observa em AA, é que a partir do momento que as pessoas começam vivenciar o programa de recuperação do AA, que são 12 passos, que vão ensinando a pessoa a admitir desde o problema com álcool, perceber quais são os gatilhos que o álcool desenvolve no seu organismo, quais são os problemas comportamentais que levam a consumir a bebida alcoólica e, a partir daí, trabalhando estratégias para se manter abstinente. A prática deste programa permite muito mais a pessoa se manter em sobriedade. É muito comum pessoas que começaram a praticar, a vivenciar as salas do AA, a servir, termo que é de cooperar com as atividades do AA.

OFuxico – O programa do AA então tem salvado vidas e famílias?

Camila Ribeiro – O Alcoólicos Anônimos no Brasil completou 70 anos em 2017. Naquele ano, fizemos um inventário de grupos, de membros e esse inventário foi respondido por parte da população de alcoólicos do Brasil. Não foram todos, mas em torno de 4 mil pessoas responderam e identificou-se com essas pessoas que responderam, que 68% das pessoas que ingressaram neste programa, não tiveram recaída por longos períodos de 5, 10, 20 anos de sobriedade. Então, veja a eficiência do programa de12 passos, que é uma metodologia de fundamentação espiritual não cientifica, mas que foi desenvolvida por 2 homens, Dr. Bill W e Dr. Bob, co-fundadores do AA, que sofriam da doença do alcoolismo, junto com a colaboração de vários amigos do AA. A programação é da vivência e prática desses dois homens. Já é vivenciado mundialmente há mais de 85 anos e vem salvando pessoas e famílias por todo o mundo.

PERSONAGENS QUE SOFRERAM COM O ALCOOLISMO NA TV

Na TV, já pudemos acompanhar alguns personagens que tiveram seus problemas com alcoolismo relatadas em cenas emocionantes. Relembre alguns:

Heleninha Roitman (Vale Tudo – 1988-1989)

Heleninha Roitman (Renata Sorrah)
Foto: Divulgação TV Globo

Na novela “Vale Tudo”, escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, Heleninha Roitman sofria com a doença do alcoolismo. Com uma interpretação ímpar da atriz Renata Sorrah, a personagem vivia a frustração de não seguir seu casamento nem suas pinturas. Em casa, não tinha o apoio nem da mãe, Odete Roitman (Beatriz Segall) com quem acabava sempre brigando. Barracos eram suas especialidades quando exagerava nos drinks.

Lobato (“O Clone” – 2001-2002)

Lobato (Osmar Prado) em "O Clone"
Foto: Reprodução TV Globo

Osmar Prado interpretou Lobato em “O Clone”, que atualmente é reprisada no “Vale a Pena Ver de Novo”, da Globo. Advogado de classe média, lutava contra o vício em cocaína e bebidas alcoólicas. A novela foi escrita por por Glória Perez.

Cristiano (“Celebridade” – 2003-2004)

Cristiano (Alexandre Borges) em "Celebridade"
Foto: Reprodução TV Globo

Cristiano (Alexandre Borges) era um jornalista que se envolveu com o álcool quando perdeu a mulher. Chegou até a ir trabalhar embriagado, dormiu em sarjeta e teve o apoio apenas do filho, ainda criança. Buscou ajuda no grupo de Alcoólicos Anônimos na trama, para se libertar do vício.

Santana (“Mulheres Apaixonadas” – 2003)

Santana (Vera Holtz) em "Mulheres Apaixonadas"
Foto: Reprodução TV lobo

A novela “Mulheres Apaixonadas”, escrita por Manoel Carlos, mostrou o drama de Santana (Vera Holtz). Professora, ela chegava embriagada para dar aula e chegava a beber até mesmo perfumes, quando não tinha bebidas em casa. Para um disfarce, vez ou outra colocava bebidas dentro de um coco verde.

Darlene (“Pé na Cova” – 2013 – 2016)

Darlene (Marília Pêra) em "Pé na Cova"
Foto: Reprodução TV Globo

Miguel Falabella foi o criador de “Pé na Cova”, exibida na TV Globo de 24 de janeiro de 2013 até dia 07 de abril de 2016. Darlene, interpretada pela saudosa Marília Pêra, maquiava defuntos na “empresa” da família. Com um copo colorido, estilo bico de jaca, sempre cheio de gin, ela estava sempre andando pra lá e pra cá, segurando ainda um cigarro.

Orestes “Por Amor” – 1997 – 1998)

Orestes (Paulo José) em "Por Amor"
Foto: Divulgação TV Globo

Orestes (Paulo José) causava uma tremenda saia justa para a filha, Maria Eduarda (Gabriela Duarte) na novela “Por Amor”, escrita por Manoel Carlos. No casamento da moça, por exemplo, não se conteve, bebeu além da conta e deu o maior vexame, fazendo com que a filha se afastasse dele. Vivia às custas da mulher, pois não tinha condições de trabalhar e tinha o carinho da filha caçula, Sandrinha (Cecília Dassi).

Renata (“Viver a Vida” – 2009)

Renata (Bárbara Paz) em "Viver a Vida"
Foto: Reprodução TV Globo

Na novela “Viver a Vida”, escrita por Manoel Carlos, Renata (Bárbara Paz) era namorada de Miguel, interpretado por Mateus Solano. Sonhadora, a moça era louca para se tornar uma modelo ou atriz de sucesso, porém, as oportunidades não vinham. Com crises de hipoglicemia, depois de muitos goles de bebidas alcoólicas, ela sofreu na pele o desequilíbrio de um alcoólico.

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