Lílian Gonçalves: “Ver Mariana Ximenez em cena é como me ver no espelho”

Por - 22/03/06 às 19:11

Márcia Lourenço

Quem vê o sorriso, sempre estampado no rosto de Lílian Gonçalves, não imagina o quanto ela já sofreu. Nascida de uma família humilde, Lílian sempre foi batalhadora e encarou vários desafios. Hoje, é dona de uma rede de restaurantes conhecida como a Rainha da Noite. Atualmente, o público está conhecendo um pouco de sua história, através da minissérie JK da Globo, onde parte de sua vida sofrida é mostrada através da brilhante interpretação de Mariana Ximenes.

Em conversa com a reportagem de OFuxico, Lílian contou um pouco de sua história, contada na minissérie que fica ano ar até a próxima sexta-feira, dia 24. Falou da grande semelhança entre ela e a personagem construída por Ximenes, sobre a família e suas conquistas.

OFuxico – A história da sua vida, mostrada em JK, é real?
Lílian Gonçalves – Sim, é o que vivi na vida real.

OF – Como se sente revendo o que viveu no passado?
LG – É indiscritível. Tento rever as cenas comigo mesma e não consigo. No geral é muito legal e importante ser retratada em vida.

OF – A Mariana Ximenez está passando o recado ao público?
LG –  Sim, claro que sim. Na minha opinião, a Ximenez é a melhor da leva de novas atrizes. Tem horas que paro e penso: como ela pode ter incorporado tão bem as situações da minha vida? Na cena da minissérie, quando ela inaugurou o bar, parecia eu mesma, o mesmo jeito, igualzinha. Ela está perfeita. Quando olho para ela em cena, é como se estivesse de frente ao espelho.

OF – O passado te acompanhou por muito tempo?
LG – Infelizmente, sim. E agüentei tudo sozinha. Escondi tudo ao máximo, tanto da minha família quanto dos meus amigos.

OF – Por quê?
LG – Porque as coisas ruins a gente deve esconder ao máximo e as boas temos de fazer grande estardalhaço. É assim que penso e assim foi. As pessoas não querem ouvir a sua desgraça ou seu sofrimento. Ninguém vai ter piedade de você e, piedade é uma coisa que nunca quis. Só minha irmã soube do caso. Muita gente descobriu depois de ler o livro que escrevi (A Vida Brilhando em Néon). Amigos de 30, 35 anos de convivência, não sabiam e muitos me ligam chorando, desesperados, soluçando e me questionam por que passaram-se tantos anos e eu nunca contei nada. Não falei, pois, na época, era uma grande vergonha e ninguém respeitava; o povo queria sempre tirar vantagem do assunto.

OF – Como ficou seu relacionamento com sua irmã, depois de ter sido estuprada por seu cunhado?
LG – Ficou bem. Na época, ela largou do marido, pegou seus dois filhos e sumiu no mundo. Foi parar em Serra Pelada e eu, em São Paulo. Ela não estava nada bem financeiramente, passou muita necessidade. Eu estava em São Paulo, com 2 ou 3 empregos. Fiquei sabendo sobre a situação dela e fui buscá-la com as crianças. Daí por diante, trabalhamos juntas aqui em São Paulo.

OF – E seu cunhado? O que houve com ele?
LG – Graças a Deus ele morreu. Morreu de doença.

OF – Na minissérie, você aprendeu a lidar com armas para matá-lo. Na vida real isso foi verdadeiro?
LG – Sim, aprendi a lidar com armas, porque durante um bom tempo da minha vida eu pensei em matá-lo. Até uns 15 anos atrás, mais ou menos, andava armada, porque tinha medo de tudo. Achava que uma arma me defenderia. Daí, chegou uma época em que decidi não portar mais arma na vida, pois conclui que não valia a pena.

OF – Você teve filhos?
LG – Tive 2 filhos.

OF – Foi com o Gaúcho?
LG – Não, não foi com Gaúcho. Não me casei com Gaúcho, aliás, acho que esta é a única coisa que acontecerá na minissérie que eu não vivi na realidade. Quando vim para São Paulo, eu tinha uns 17 anos. Escolhi a cidade por ter um nome santo. Comecei a trabalhar no mesmo dia que cheguei aqui, no bar Sopa Carioca, da Avenida Rio Branco. Não tinha nem onde morar. Lá, conheci um garçom, no mesmo dia, que tinha vindo tentar a vida de artista por aqui. Nós nos casamos e tivemos dois filhos: o Job e a Kalynka, hoje com 27 e 34 anos. E tenho 3 netinhos lindos!

OF – Você se tornou muito amiga de Juscelino Kubtschek. Qual a ajuda que ele lhe deu na época em que decidiu abrir seu primeiro restaurante?
LG – Éramos muito amigos mesmo. Ele sempre me falava para não sair das vistas dele, que onde estivesse eu o procurasse para que ele pudesse ajudar de alguma forma.

OF – E vocês continuaram se falando?
LG – Não, perdemos o contato. Houve a revolução política e tudo se dificultou. Eu estava trabalhando muito e ele estava, na época, de inauguração do Palácio Oficial. Quando me conscientizei que tinha de procurá-lo para rever, para dizer que estava ótima e tinha virado empresaria, soube que tinha sofrido o acidente que o matou. Não deu tempo de chegar nenhuma notícia minha pra ele.

OF – Sua história, apesar de muito sofrida, traz grandes lições. Por que nunca contou antes?
LG – Porque na infância a gente não dá importância para as coisas. Depois que crescemos, é que vemos o significado de cada uma delas.

OF – Como é que você comprou seu primeiro restaurante em São Paulo?
LG – Nossa, é uma história muito engraçada. Depois do bar em Brasília, trabalhei durante uns dois anos como garçonete e fui procurando um ponto pra mim. Um dia, li o anúncio onde uma pessoa queria vender com urgência, um barzinho na Rua Jaguaribe. Corri para lá, com a cara, a coragem e nenhum dinheiro no bolso. O dono do bar era um japonês e não queria me vender de jeito nenhum. Jurei a ele que pagaria o bar, todo mês, direitinho, ou então devolveria as chaves. Daí, ele me vendeu o bar em 70 parcelas, que paguei rigorosamente. E se transformou num grande sucesso.

OF – Como se chamava?
LG – Roda Viva.

OF – Daí por diante, como você aumentou seus empreendimentos?
LG – Fui vendendo um e comprando outro.

OF – Como se chamaram os outros restaurantes?
LG – Depois do Roda Viva veio o Bar e Lanches Kalinka, Toca da Angélica, a rede Biroska (I,II,III e IV). Daí, diversifiquei e abri o Bastidores, Bar Boemia, Scandal, Caipirosca, Dança Brasil, Poison, A Sucata. Tem um que digo, foi a melhor invenção: Espetinho Cerveja e Cia. Também tem o Território da Bahia, Viva Maria Pizza Bar, em homenagem à minha mãe, dona Maria, e acabo de inaugurar o Frango Com Tudo, um lugar repleto de receitas de frango, principalmente com alguns pratos que Juscelino adorava, como por exemplo, a Galinhada do Juscelino.

OF – Em todas as casas, as receitas são suas?
LG – São minhas e digo mais: supervisiono pessoalmente as panelas. Sempre resgato receitas minhas para colocar nos restaurantes.

OF – E antes de oferecer ao cliente, há uma degustação antes para ver se está tudo ok?
LG – Há sim. Preparo as receitas, chamo amigos e funcionários para saber a opinião de cada um. Sempre tive a aprovação e os clientes adoram também. Tanto que provam, voltam e trazem seus amigos e parentes para experimentar também.

OF – Você se elegeu miss Brasília. Depois participou de outros concursos?
LG – Me elegi e nunca mais participei. Acho que foi em 1968 ou 1969. Lembrar de datas é um problema para mim (risos). Sobre o concurso que participei, escondi tudo da família inteira, que era contra. No dia em que recebi a faixa e a coroa, tomei uma baita surra da minha mãe e dos meus irmãos – eu tinha 9 – , na frente de todo mundo. Fiquei traumatizada, arrumei minhas coisas e foi aí que decidi vir para São Paulo. Percebi que o mundo era pequeno e as pessoas esquisitas. Queria mostrar que era mais que isso.

OF – No total, hoje, quantas casas você administra?
LG – Ao todo são seis restaurantes, todos na Rua Canuto Duval, no centro de São Paulo, funcionando das 17h até às 7h da manhã.

OF – E você dá conta de visitar todas elas, todas as noites?
LG – Religiosamente! Circulo entre todas elas todas as noites e com o maior prazer. É o meu trabalho, minha conquista.

OF – Seus nove irmãos ainda estão vivos?
LG – Não, morreram cinco deles.

OF – E você tem contato com os quatro?
LG – Dos quatro que sobraram, tenho contato apenas com o Guido.

OF – E os outros?
LG – Os outros sempre foram e são cruéis comigo.

OF – E sua irmã?
LG – Minha irmã morreu. Ela trabalhou e me ajudou muito, mas já se foi.

OF – Então, hoje sua família é pequena?
LG – Não diria pequena, não. Sou eu, meus filhos e netos.

OF – Sua história vai virar filme?
LG – Sim. A partir do meu livro, tenho contato de dois cineastas querendo comprar os direitos autorais da história para transformar em longa-metragem. Daí vai aparecer muita coisa. Por hora, a minissérie mostra apenas uma pequena parte do que vivi.

OF – O que Lílian Gonçalves aprendeu com a vida e tudo o que passou?
LG – Muito cedo aprendi que de todas essas tristezas que aconteceram, na verdade não tive nenhuma direção. O mundo foi minha escola, minha faculdade. Minha mãe se tornou alcoólatra, meu pai morreu cedo, ela ficou desnorteada. Na vida, não se pode deixar que essas coisas nos amargurem e nos tornem pessoas de mal com a vida. Transformei as coisas e nunca transmiti nada de ruim para as pessoas. Tive um grande aprendizado: com alegria, espontaneidade e garra, adquiri o respeito pessoal e comercial que tenho hoje, sem a necessidade de recorrer à bebida, ao fumo ou às drogas. Às vezes, uma coisinha vira um próprio drama e ninguém fica por perto quando você está vivendo um drama. Não me tornei amarga, triste, nem recalcada ou depressiva. Transformei tudo em trabalho e crescimento.

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